Optei por ser muito cautelosa e por isso
demorei bastante para escrever esse relato. Primeiro porque não queria
sair por aí dando opinião daquilo que era desconhecido por TODOS nós. Mas hoje,
praticamente 60 dias depois de um país completamente fechado e lutando contra
um inimigo invisível, já me acho capaz de dar esse testemunho, completamente
pessoal e que pode não refletir a realidade de outras pessoas. Mas vamos lá!
Nossa
linha do tempo
Vimos nossa rotina começar a mudar no dia 24 de
fevereiro, quando as aulas da minha filha na escola foram suspensas. Nessa
data, inclusive, ela sairia para uma viagem de três dias com a escola para a
região central da Itália. No domingo, ou seja, véspera da partida, recebi um
comunicado da escola cancelando o passeio. Naquele momento eu já percebi o
quanto era grave a situação.
Eu costumo falar que naquele dia 24 de
fevereiro começou a minha quarentena. Foi nessa época também que a província de
Lodi foi declarada “zona rossa” aqui na Itália, ou seja, a primeira região a
fechar-se completamente. Moro na Lombardia, que viria a ser colocada em
lockdown, assim como todo país, no dia 09 de março. E estamos ainda hoje, mais
de 50 dias depois do fechamento inimaginável para qualquer um.
Como é viver no epicentro do epicentro da
pandemia na Europa
Morar na Lombardia se tornou sinônimo de estar vivendo
na região mais atingida do País mais atingido pelo vírus até aquele momento (antes
dos Estados Unidos começarem a registrar seus contágios). Abrir a internet e
ler nos sites italianos e brasileiros os nomes das cidades que passamos com frequência
foi impactante. Mas, da minha parte, não houve pânico. De verdade. Sempre existiu
muita preocupação, o que nos impulsionou a tomar todos os cuidados e precauções,
mas em momento nenhum o medo ou o pânico falou mais alto.
Assim como Nova Iorque e São Paulo foram as
cidades mais atingidas nos EUA e Brasil, a Lombardia, cuja capital é Milão, é
também a região mais industrial e economicamente desenvolvida da Itália.
Portanto, não se tratava de algo “muito errado” que a Itália havia cometido,
mas de uma tendência em outros lugares do mundo.
Ruas vazias
O País inteiro estava então em isolamento, por causa
de um vírus sem vacina, sem medicamento. Sem ninguém entender exatamente o que
podia ser feito, a não ser não sair de casa.
Lembro da primeira vez que ouvi o carro da
polícia na rua, anunciando por mega fone que era obrigatório permanecer em
casa. Coisa de guerra, coisa que nem eu e nem ninguém dessa época imaginou
viver.
O silêncio predomina em nossos dias. Sejam eles
úteis ou nos finais de semana. Nas madrugadas ou no meio da tarde, quando a
saída da escola, em tempos normais, preenche minha rua com as vozes, risadas e
brincadeiras das crianças.
Sair na calçada, olhar para os dois lados da
rua e não ver absolutamente ninguém é realmente angustiante. É a resposta
persistente e presente para a ideia de que algo muito grave está acontecendo.
Sair de casa, na verdade, dá multa. De 400 a
3000 euros para quem não tiver um motivo entre os permitidos para estar na rua.
Sem contar com a possibilidade de até 12 anos de prisão caso a pessoa seja
testada positivo para o vírus.
Comércios fechados, industrias paradas, escolas
de todos os níveis com aulas suspensas, locomoção apenas com uma justificativa
documentada e impressa, que comprove a real necessidade de sair de casa:
trabalho na linha de frente, supermercado, visita ao médico ou farmácia. Igrejas
e templos fechados. Uma verdadeira provação de esperança e fé.
As cenas que vemos na Tv
Recebi mensagem de amigos do Brasil,
perguntando se tudo aquilo que estava passando na televisão no Brasil era
realmente verdade. Sim, era. Era o que chegava em nossas casas pela mídia
italiana também. Hospitais de Milão, Bergamo e Brescia em colapso. Sistema
funerário em colapso. Cenas de caminhões do exército levando caixões para
outras cidades.
Mas, pessoalmente, só uma coisa me entristeceu
mais do que ver depoimentos dos familiares sem poder prestar homenagens na
despedida de seus entes queridos: o depoimento de um médico pedindo doação de
tablets para que idosos internados pudessem ver (muito provavelmente pela
última vez) o rosto de seus familiares. As pessoas literalmente morrendo sozinhas.
Mas era preciso me manter firme. Com o
psicológico em dia, na medida do possível, e com esperança de que tudo terminará
bem.
Supermercados, Farmácias e demais comércios
De novo, retrato o que eu vivi aqui na Itália
com a minha família: não sofremos restrição de nada no que diz respeito à
mantimentos ou medicamentos. Os supermercados funcionaram em horários
estendidos durante todos os momentos. Com prateleiras cheias, organizadas e
preços normais, sem alteração.
A higiene e os cuidados também chamam atenção,
positivamente. Funcionários de máscara, álcool em gel e luvas disponíveis na retirada
e devolução dos carrinhos. Filas apenas em horários específicos e nos mercados
menores, de bairro.
O mesmo vale para farmácias. Atendimento individualizado,
mas sem aglomeração ou longas esperas.
Restaurantes e pizzarias funcionaram em sistema
de entrega em domicílio desde o início, também sem alterar preços ou condições.
A escola
O primeiro setor a ser fechado e provavelmente
o último a retornar à normalidade, o sistema de ensino aqui na Itália está
fechado desde 24 de fevereiro. Vale lembrar que aqui o ano escolar começa em
setembro e termina em junho do ano seguinte. Portanto, as aulas foram suspensas
faltando 3 meses e meio para terminar o ano escolar.
Minha filha tem 13 anos e frequenta o
equivalente à sétima série no Brasil e agora cursa o programa de ensino à distância,
com tarefas explicadas pelas mesmas professoras que a acompanham desde o início
do ano escolar. Por meio de encontros online em uma plataforma que permite
vídeo aulas, upload de conteúdos e avaliação do aprendizado, o programa escolar
está sendo seguido sem maiores prejuízos para as crianças. Recentemente foi
publicado decreto que valida esse sistema de ensino como paliativo, e que os professores
farão a avaliação conceitual do desempenho e participação dos alunos para chegar
à aprovação ou à necessidade de recuperação.
Pessoalmente o que eu pude vivenciar com a
minha filha foi uma oportunidade incrível de aprendizado e familiaridade com os
instrumentos de informática. É incrível chegar a essa conclusão, mas é verdade:
nossos adolescentes tem uma capacidade incrível e intuitiva para assistir
vídeos, ouvir músicas, navegar pelas redes sociais. Mas esbarram em uma porção
de dificuldades na hora de manusear uma caixa de e-mail, formatar um documento
word ou criar uma apresentação em power-point.
Mas claro que ela está com saudade dos amigos,
dos professores e até da comida no almoço da escola. Por ela, voltaria amanhã mesmo
para a escola. Mas está lidando com esse momento com extrema maturidade e
compreensão. Está seguindo a rotina de sono e estudos, de uma forma muito independente,
que deixa a mamãe aqui cheia de orgulho.
O trabalho
Assim como em todo o mundo, os trabalhadores
autônomos foram os que mais sentiram com o lockdown do país. O mesmo vale para
os setores de turismo, rede hoteleira, companhias aéreas, restaurantes, bares e
cafés, além dos shoppings, cabeleireiros e academias.
As industrias alimentícias não pararam, assim
como aquelas de setores primordiais como o farmacêutico. As demais colocaram
seus funcionários para trabalhar em sistema de smartwork (home office), mas com
as linhas de produção paradas, a demanda de trabalho reduziu para todos.
Empresas automobilísticas passaram a produzir
equipamentos para hospitais, assim como algumas de cosméticos e perfumes contribuíram
com a produção de álcool em gel.
Existem os subsídios do governo para
profissionais autônomos e também para os trabalhadores em sistema de contrato (equivalente
à CLT do Brasil), similares ao seguro desemprego e demais auxílios do INSS.
Porém, assim como em todo o mundo, um momento delicado para a economia será
inevitável.
Futuro
Amanhã iniciamos uma nova fase, com um afrouxamento
ainda muito sutil das medidas de isolamento, marcado principalmente pelo retorno
das indústrias e de algumas modalidades de vendas nos comércios. Porém, ainda será
necessário justificar saídas de casa por motivos de extrema necessidade. A fase
seguinte está prevista para o dia 18 de maio quando se espera que restaurantes
poderão voltar a abrir mantendo distanciamento entre as mesas, assim como a
reabertura de outros setores do comércio. Sabemos, enfim, que só a partir de 1
de junho existe a possibilidade de voltarmos a circular sem a obrigatoriedade
de justificativa.
Enfim. Poderia escrever mais diversas páginas e
ainda assim não conseguiria retratar exatamente como todos esses acontecimentos
impactaram na minha rotina e na minha forma de encarar a vida. Na minha casa
optamos por nos manter saudáveis e muito confiantes de que esse momento terá um
fim. Ainda incerto, seja na data, seja em como nossas vidas vão mudar a partir
daqui.
A verdade é que não presenciamos aqui muitas tragédias
que vemos pela mídia no Brasil. Ou melhor, são tragédias diferentes. Temos números
absurdos que só “perdem” para os EUA. Temos cenas chocantes, de dezenas de páginas
nos obituários dos jornais. Mas nossa desigualdade de renda aqui na Itália não é
acentuada como no Brasil. Temos questões carcerárias, mas não tão graves quanto
às do Brasil. Temos famílias que vivem de situação difícil, mas não na precariedade
que evidencia o índice de pobreza do Brasil. É tudo muito diferente e portanto,
não dá pra comparar. Nada que eu contasse aqui seria uma grande novidade. Isso
porque o momento é cruel e de crise para todo o planeta.
A preocupação com o momento foi e é presente
cotidianamente em nossas vidas. O que vai acontecer agora? Voltaremos à vida
normal? E se com a reabertura voltarem a crescer os números de contágio e
óbitos? Não sabemos. O que eu sei é que estamos aqui, pertinho de Milão, na tão
falada e abatida Lombardia, no País que para mim é o mais lindo do mundo. E
seguimos aqui! Com o coração e as orações divididos entre nosso berço que é o Brasil
e nosso LAR que é a Itália!
E como dizemos por aqui: ANDRÀ TUTTO BENE!
E como dizemos por aqui: ANDRÀ TUTTO BENE!
Roma. Fonte: Pixabay |
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